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Porter um retorno ao tradicional papel da empresa?

 

Maria Cecília Prates Rodrigues*

 

Michael Porter e Mark Kramer já não são mais ardorosos defensores da “filantropia estratégica”, como pude detectar no último número (jan.2011) da Harvard Business Review (HBR). Em artigo sobre “como consertar o capitalismo e inaugurar uma nova era de crescimento”, eles afirmam categóricos que “a solução está no princípio do valor compartilhado, cujo foco é a relação entre o progresso social e o econômico. Valor compartilhado não é responsabilidade social, filantropia ou sustentabilidade. Uma empresa atuando como empresa, não como um ente filantrópico, é o agente mais forte para lidar com as prementes questões a nossa frente”. Eles mudaram? Essa mudança era previsível?

A meu ver, eles mudaram sim, mas apenas em termos de forma e terminologia; e não de conteúdo, como pude perceber em seus artigos sobre o tema na HBR nesses últimos dez anos. O importante é que a idéia central se manteve, que é baseada no poder da empresa em contribuir para as mudanças sociais a partir de sua própria estratégia de negócio.

 

Para começar, há que se reconhecer que o artigo de Porter e Kramer sobre a “filantropia corporativa estratégica”, publicado na HBR de 2002, ficou tido como a grande referência no tema, muito embora nem tenham sido eles os criadores do conceito. Já em 1996, em artigo anterior na HBR, Craig Smith utilizara esse mesmo termo para apontar o poder competitivo que as doações corporativas poderiam ter quando alinhadas à estratégia das empresas e, com isto, até serem justificadas frente às demissões em massa das companhias norte-americanas naqueles anos 90.

Não se pode negar que Porter e Kramer sejam os ícones da nova abordagem da ação social das empresas, tão valorizada no mundo corporativo desse milênio. Não mais de uma atuação de caridade ou de boa cidadania na comunidade, mas uma

atuação em prol de causas sociais que sejam realmente estratégicas para os interesses da empresa. Pois só se a ação social for estratégica é que ela vai conseguir, de fato, ser efetiva na solução dos problemas sociais de exclusão e pobreza e, ao mesmo tempo, ser efetiva em contribuir para os negócios da empresa. Vale notar que, embora não ainda explicitado, o conceito de “valor compartilhado” já estava por detrás da noção da filantropia estratégica.

 

O caso da Cisco foi destacado pelos autores nesse artigo como um exemplo claro de filantropia que nasceu como uma pequena iniciativa de apoio a uma escola local, para solucionar uma carência pontual de mão de obra especializada da empresa, e depois veio a se transformar na Academia Cisco de Rede, um projeto social estratégico de RH para a companhia como um todo, em âmbito global.

 

Mais adiante, em 2006, em outro artigo na HBR, Porter e Kramer introduziram o conceito do “valor compartilhado”, só que não restrito ao campo da filantropia, mas associado à abordagem mais ampla da Responsabilidade Social Corporativa

(RSC), que engloba todos os públicos relacionados com a empresa. Sendo coerentes com o enfoque anterior, eles foram enfáticos em afirmar aqui que a RSC não deveria ter caráter responsivo, isto é, se limitando a ações de boa cidadania e mitigação de danos causados pela atividade produtiva da empresa.

 

Ao contrário, para maximizar a geração do “valor compartilhado” para a sociedade e para a empresa, a RSC deveria ter caráter estratégico e, para isto, ter uma “pauta afirmativa” de iniciativas voltadas para as questões sociais relevantes do contexto competitivo da empresa – seja as relativas à cadeia de valor ou ao próprio cluster.

 

Como exemplo de atuação estratégica em RSC, eles citaram nesse segundo artigo o caso da Nestlé que, para viabilizar a sua expansão na Índia, teve que assumir um papel social grande junto aos pequenos produtores de leite de algumas áreas

daquele país, em geral muito pobres e em situação precária de produção, de modo a tê-los como fornecedores para as suas fábricas locais.

 

Quanto ao último artigo deles na HBR, esse de jan.2011, o que me parece é que Porter e Kramer se tornaram desiludidos com o poder transformador dos movimentos da filantropia corporativa, responsabilidade social e sustentabilidade – que eles próprios tanto estimularam. E a principal razão é que o caráter estratégico dessas iniciativas acabou limitado ao nível da retórica das empresas,

não se estendendo efetivamente às suas práticas. Ou seja, apesar desses movimentos, as empresas continuaram com as questões financeiras no centro de suas atenções, e as questões sociais relegadas à periferia.

 

Possivelmente foi esse desencanto que levou os referidos autores a se voltarem para a nova abordagem, a de que a solução para os problemas sociais devem ser buscados no contexto do próprio negócio, ou seja, no âmbito do processo de geração de valor da empresa. Poder-se-ia questionar se essa proposta não representaria um retorno ao pensamento de Milton Friedman que, nos idos dos anos 60, fora contundente defensor de que a empresa consegue promover melhor os interesses da sociedade como um todo na medida em que promove os seus próprios interesses. E, nesse caso, o enfoque de Porter e Kramer estaria sendo um retrocesso?

 

O que eles argumentam é que, se desde a sua concepção, o lucro contiver um propósito social, além de um propósito econômico, ele vai representar uma forma superior de capitalismo. Na época do Friedman, dominava uma visão unilateral do lucro, só voltada para os ganhos econômicos. Já a proposta deles é diferente, pois tem o foco na geração do “valor compartilhado”, definido como as políticas e práticas operacionais de uma empresa que aumentam a sua competitividade e ao mesmo tempo melhoram as condições socioeconômicas dos diferentes públicos com os quais ela interage.

 

Coerentes com as abordagens anteriores, os autores enfatizam que a geração do “valor compartilhado” pode se dar de três maneiras: (i) reconceber produtos e mercados, tendo em vista atender às necessidades de consumidores menos favorecidos e de baixa renda; (ii) redefinir a produtividade na cadeia de valor, com ações tais como o uso eficiente de energia e água, logística do transporte, acesso e viabilidade de fornecedores, capacitação do pessoal, e saúde /segurança do trabalhador; (iii) promover o desenvolvimento de clusters locais, tendo em vista as carências identificadas nas bases de operação da empresa.

Finalmente, retomo a segunda questão colocada no início desse artigo: essa mudança de abordagem de Porter e Kramer já era previsível?

 

Acredito que sim. Tanto que em artigo que escrevi, há três anos e meio, para o jornal Valor (23 set.2007, p.F2), eu havia justamente feito uma reflexão de que em futuro próximo a ação social iria desaparecer enquanto área específica da estrutura corporativa. Isto porque, se levada ao extremo a evolução da ação social corporativa estratégica com base nas idéias dos renomados estrategistas Porter&Kramer e Prahalad, as atribuições dessa área iriam acabar se fundindo às tradicionais áreas de gestão da empresa, tais como RH, mercado consumidor, fornecedores, marketing e relacionamento com o governo. Ou seja, a questão da ação social corporativa iria se tornar tão entranhada com o negócio, que acabaria sendo absorvida por diferentes esferas do negócio.

 

*Maria Cecília Prates Rodrigues é autora dos livros “Ação social das empresas privadas: como avaliar resultados? Editora FGV, 2005; “Projetos sociais corporativos – como avaliar e tornar essa estratégia eficaz”

Editora Atlas, 2010. Site: www.estrategiasocial.com.br.

 

FONTE: Gife

 

 

 

 

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