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Filantropia emergente: o que isso quer dizer?

A bolsa Gucci da nova filantropia * Olga Alexeeva ** Revista Alliance

 

Uma noite, fui a uma festa organizada por uma família rica de um país da América do Sul dedicada à filantropia. Os convidados, também de famílias ultra-ricas, reuniram-se para discutir as suas doações, compartilhar experiências e possivelmente fazer alianças. Eu fui convidada como especialista externa com conhecimento das tendências da filantropia em outros lugares. Enquanto ouvia os outros convidados conversando, comecei a perceber que, se a doação for vista apenas como mais um acessório de um estilo de vida milionário, em vez de um ato que implica em uma cosmovisão totalmente moral, tal doação, antiga ou nova, não trará grandes mudanças para o mundo.

Talvez seja a hora de abraçarmos a idéia da “responsabilidade social privada”. Eu ouvi uma senhora impecavelmente vestida dividir com uma amiga a sua frustração com o fato de os camponeses do norte do país não quererem deixar suas terras apesar das “ofertas” generosas da empresa de sua propriedade. A amiga se solidarizou com ela e respondeu com uma história semelhante de trabalhadores pobres exigindo esse ou aquele direito … Meu copo de vinho ficou esquecido, tão chocada eu estava com o aparente desprezo e descaso das duas senhoras pelas pessoas abaixo delas na escala social. Ter crescido na União Soviética, apesar de todas as suas falhas, criou em mim um forte senso de que todas as pessoas são iguais, a despeito da sua riqueza ou da falta dela. Mais ainda, fiquei chocada com o contraste entre os reais sentimentos dessas senhoras e suas aspirações filantrópicas.

Desenvolvimento das doações nas economias BRIC A filantropia organizada, por muitos anos associada principalmente ao mundo ocidental, é hoje um fenômeno crescente no Leste e no Sul. A doação individual na Rússia mais do que triplicou apenas em 2008, apesar da crise econômica.

Na China, onde, há menos de cinco anos, menos de 3 por cento da população doava para caridade, em 2009, após o grande impulso gerado pelo terremoto em Sichuan, mais de 84 por cento dos chineses consideram a doação uma parte importante de suas vidas.

No Brasil, as primeiras fundações privadas criadas por doações surgiram nos últimos dez anos, e a Índia também testemunhou um surto de doações não-religiosas, especialmente entre as novas classes médias. Eu só posso saudar esses desenvolvimentos. Durante muitos anos, tenho defendido constantemente a doação no Leste e no Sul, e venho insistindo com o setor filantrópico do Ocidente que olhe para esses importantes novos parceiros que podem ter no Leste e no Sul.

Mas, embora aplauda as suas doações, a conversa naquela festa na América do Sul continua voltando a mim. Eu ainda não consigo me livrar da sensação da profunda contradição entre o desprezo e a negligência de suas atitudes no dia-a-dia para com os pobres e a caridade paternalista que caracteriza a sua filantropia.

Conversas com diversas pessoas na Ásia e na África confirmaram que essas são atitudes comuns. Isso demonstra claramente a necessidade de tratar da questão da responsabilidade social privada em oposição à responsabilidade social corporativa. Em direção à ética filantrópica A ética filantrópica, juntamente com toda a questão da filantropia, foi, por muitos anos, uma área dominada pelos doadores dos EUA e do Reino Unido.

Mesmo nos EUA, amplamente reconhecidos como a nave-mãe no espaço de desenvolvimento da filantropia, a ética da doação só recentemente começou a ser discutida amplamente e, tenho certeza, de que a mesma discrepância entre os estilos de vida e as práticas filantrópicas ainda existe entre os doadores desses lugares. Entretanto, em relação aos “novos” doadores do Leste e do Sul, a ética filantrópica nunca foi adequadamente discutida.

É uma noção comum, especialmente nos ambientes filantrópicos menos sofisticados, a de que o termo “ética filantrópica” se aplica somente às questões técnicas das doações, como as regras de estabelecimento de fundos ou as áreas para investimento das doações (evitar o tabaco, por exemplo, etc.).

Eu argumentaria que este termo deve ser compreendido de forma mais ampla e que deve englobar os filantropos privados, especialmente os ricos, e sua relação com os seus empregados, incluindo os empregados domésticos, as empresas de que são donos (e aquelas em que têm influência) e, até mesmo, as suas conversas. Da mesma forma que, no mundo corporativo, o termo responsabilidade social agora se aplica a toda a gama de atividades da empresa, e não apenas a seus orçamentos de suporte à comunidade, deveríamos começar a exigir dos que estão ativa e publicamente envolvidos com doações ou investimentos sociais privados, a observância de certos padrões morais e éticos.

Deveríamos insistir que estendam os princípios e objetivos que aplicam à doação – redução da pobreza e da exclusão social, proteção ambiental, acesso à educação e assistência médica – às pessoas que empregam e com quem interagem no dia-a-dia.

As missões e as idéias filantrópicas devem ter raízes em valores reconhecidos e informar esses valores, mas também serem informadas por eles. Doadores que praticam o que pregam Infelizmente, especialmente entre os doadores do Leste e do Sul, é prática normal tratar mal os serviçais e despejar agricultores de sua terra com compensações risíveis de manhã, e, à tarde, assinar cheques para instituições de caridade de ajuda aos pobres.

É absolutamente inaceitável construir uma usina química no delta de um rio vital para a vida e, no dia seguinte, fazer um discurso inspirador sobre o aquecimento global em uma conferência internacional. Uma passagem da bíblia aconselha a não deixar que a mão direita saiba o que a esquerda está fazendo. Essa frase, pelo menos na tradição do Cristianismo Ortodoxo Oriental, é frequentemente usada para apoiar e estimular a filantropia silenciosa, a generosa doação anônima. Mas ela tem um viés diferente em muitas partes do mundo, onde doadores exploram os pobres e destroem o meio ambiente com a mão direita, enquanto suas generosas mãos esquerdas criam fundações e envolvem-se em investimentos filantrópicos. Uma tradição de doação orgânica Outra questão estreitamente vinculada à ética da doação é o poder da tradição.

A filantropia não é um fenômeno ocidental, como Barbara Ibrahim corretamente aponta em sua coluna neste número, é uma tradição ancestral em muitas partes da Ásia e do Oriente Médio. Mas se nos perguntarmos se a filantropia mudou desde então, a resposta, em muitos casos, será “não”.

A tradição filantrópica, preservada e nutrida, é um estímulo importante para as pessoas doarem. É um padrão de comparação para o desempenho dos novos filantropos. Mas, e se a tradição filantrópica permanece imutável há séculos e apenas mantém o status quo, e se a tradição simplesmente for uma justificativa para não se mudar nada e não colocar em cheque as práticas e abordagens atuais? Nesse caso, acho que tais tradições precisam ser revisitadas. Como tudo mais, a tradição deve evoluir com o tempo e refletir as mudanças na vida econômica, política e social dos países.

Da mesma forma que a quantidade das doações não é medida da sua quantidade, a longevidade da tradição filantrópica não prova que ela produziu uma mudança duradoura nessas sociedades. Perguntas sobre como preservar o capital cultural de longo prazo das sociedades não-ocidentais e, ao mesmo tempo, alcançar igualdade e justiça social, e diminuir a exclusão social, vão muito além da filantropia.

Mas a filantropia é, e cada vez mais se torna, um instrumento poderoso para se encontrar soluções para esse complexo desafio. A filantropia, por definição está livre dos jogos e os temores políticos, e pode, e deve, experimentar e buscar esse equilíbrio entre tradição e modernidade. Ela deve nutrir modelos e idéias que respeitem o passado, mas que garantam um futuro igualitário e justo para todos. Por muitos anos, essas questões perseguem os doadores que trabalham no Leste e no Sul. Mas hoje, à medida que os recursos financeiros e a influência dos filantropos ocidentais diminuem, essas perguntas devem ser feitas aos doadores na Índia e na China, no Brasil e no Golfo. Filantropia “da moda” Finalmente, as perguntas relativas à ética e à direção do desenvolvimento filantrópico no Leste e no Sul também são questões vitais para as organizações de desenvolvimento da filantropia e as principais organizações de fundraising que trabalham com novos doadores nessas áreas. Muito freqüentemente, as organizações de suporte a doadores e as organizações de fundraising se contentam com o fato de que tal família rica começou a fazer doações.

Elas não fazem a si mesmas as difíceis perguntas sobre a qualidade e a ética dessas doações. Admito que eu mesma sou culpada disso. Durante muitos anos, ficava feliz por conseguir fazer com que ricos russos abrissem suas bolsas. A eficácia dessas doações e o que elas faziam pela sociedade russa me parecia muito menos importante. Como resultado, agora temos de lutar com duas tendências na filantropia que cresce exponencialmente na Rússia: a cultura dos “quereres”, quando os doadores financiam algo que os atrai sem pensar se existe uma real necessidade ou sobre o que os beneficiários pensam do assunto, e a cultura da “ajuda direta”, quando massas de doadores de classe média na Rússia rejeitam o setor sem fins lucrativos e preferem doar diretamente para as pessoas necessitadas. Em vários outros países, a tendência das organizações de suporte a doadores de seguir seus clientes em lugar de liderá-los resultou no que eu chamo de filantropia “da moda”, quando palavras novas, como investimento social, ou novos modelos, como filantropia de risco, são adotados, mas nem os doadores nem as organizações de suporte na realidade se perguntam:isso está funcionando? Precisamos deste ou daquele belo modelo de doação, ou o copiamos apenas porque está na moda, uma nova bolsa Gucci filantrópica? Qualquer que seja o nome que dermos à filantropia no Brasil ou na Índia, Rússia ou China, Oriente Médio ou África – investimento social, doação criativa, filantropo-capitalismo – essas são apenas palavras se não há mudanças de atitude, respeito e reconhecimento pelas pessoas, debate sobre a responsabilidade social privada e a ética filantrópica.

Podemos deitar e relaxar ao sol das crescentes doações, mas este sol acabará por ir se apagando se não criarmos uma cultura onde os doadores comecem a pensar não apenas em como eles querem doar, mas também no que é realmente necessário e no que os beneficiários de sua generosidade pensam dela.

Se quisermos garantir que, nos próximos anos, a filantropia em todos os cantos do mundo realmente faça avançar a justiça social, acho que é hora de começar a explorar a noção de responsabilidade social privada. Editora convidada deste artigo especial da Alliance: Olga Alexeeva dirige o CAF Global Trustees, responsável por promover fundações privadas e familiares, e serviços do CAF para pessoas ricas em todo o mundo. Antes disso, ela trabalhou durante 12 anos no CAF Rússia (1993-2005), como diretora nos últimos sete anos. Email: oalexeeva@cafonline.org Comentário de Jacqueline Delia-Brémond Fiquei um pouco nervosa com o pedido para comentar o artigo de Olga Alexeeva, pois não gostaria que as minhas respostas dessem a impressão de que nós, do Ocidente, estamos tentando ensinar os novos filantropos do Leste e do Sul a doar seu dinheiro. Entretanto, poderíamos dizer que talvez haja dois estágios de filantropia, como o que acontece, por exemplo, com os colecionadores de obras de arte.Primeiramente, você tem de decidir que deseja gastar o seu dinheiro dessa maneira e, em segundo lugar, precisa se educar para poder julgar o valor daquilo em que está gastando. É por isso que não concordo totalmente com Olga Alexeeva quando ela diz que se culpa por ter levado os novos ricos da Rússia simplesmente a doar seu dinheiro. Esse foi apenas o primeiro passo e tinha de ser feito. O segundo passo deveria ser aprender a gastar o dinheiro.É como as famosas cinco perguntas que os jornalistas aprendem que precisam fazer para ajudá-los a escrever um bom artigo de jornal: quem?, o quê?, quando?, onde?, por quê? e como?. Neste ponto, é necessária alguma reflexão para garantir que as ações da pessoa como doadora não estejam em contradição com seu próprio comportamento como indivíduo ou como dirigente de uma empresa.Se os dois aspectos não estiverem em harmonia, tanto a imagem quanto a mensagem ficam confusas. Por exemplo, a nossa fundação, a Fondation Ensemble, é privada, mas a empresa de meu marido, a Pierre & Vacances, que trabalha na área de turismo, é totalmente alinhada com uma atitude sustentável em seus vários setores de atividades (construção, uso de água, educação ambiental em clubes infantis, etc.) e no próprio funcionamento da empresa. Para nós, sendo financiadores, não poderia ser de outra forma. Seria incoerente com a nossa ação dentro da nossa fundação. Isso é parte do segundo passo. Poderíamos ir mais além e sugerir que esses novos filantropos, que vivem em países onde as necessidades são, muitas vezes, imensas, estudassem as reais necessidades de seus países e tentassem atuar em um setor onde a sua ação é realmente necessária. Um passo além seria os filantropos que vivem em países onde as ações de seus próprios governos e empresas estão tendo um efeito devastador em alguns países emergentes tentarem apoiar projetos que contrabalançassem essas ações negativas. Na verdade, poderíamos dizer que a filantropia deveria ser baseada mais na reflexão do que na emoção, mesmo que os filantropos, como os colecionadores de obras de arte, sejam livres para atuar nas áreas que acham mais interessantes ou mais gratificantes. De qualquer modo, acredito que as qualidades aplicadas à ação filantrópica e ao comportamento pessoal devam ser as mesmas que as usadas em um empresa de sucesso:rigor e correção. Jacqueline Delia-Brémondé fundadora e vice-presidente do Conselho de Curadores da Fondation Ensemble. Email: dbremond@fondationensemble.org FONTE: http://site.gife.org.br/artigo-filantropia-emergente-o-que-isso-quer-dizer-13609.asp

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